O que distingue as obras de arte dos objetos vulgares?
É bem conhecida a história de como Warhol, em 1964, transformou várias
caixas de sabonete comuns, as Brillo Box, num objeto artístico célebre. Este episódio tinha já sido precedido pelo famoso urinol de Duchamp, criado em 1917, também conhecido pelo seu título Fonte. Este novo capítulo da história da arte, a que chamamos pop art, levanta diversas questões teóricas, entre elas “o que é a arte?” e, mais especificamente, “o que torna as obras de arte diferentes dos objetos comuns?”
No último século e atualmente, tem havido uma cada vez maior tendência por
parte dos artistas para apresentar objetos da vida quotidiana e pretender classificá-los como obras de arte. Tal ideologia tem-se manifestado nos casos em que artistas apresentaram nas suas exposições, por exemplo, a própria cama por fazer, um crucifixo mergulhado em urina, uma pilha de lixo ou até mesmo um monte de excremento de elefante.
A menção destes casos extremos demonstra bem até que ponto pode chegar
quem cometer a falácia lógica da circularidade escondida por trás desta corrente
artística. O que é arte? É o que o artista assim o considerar. E quem é o artista? É quem faz arte. Deste modo percebe-se que o objeto só por si não pode ter valor artístico.
Desmistificada esta conceção de que bastam a palavra e a autoridade do artista
para o objeto vulgar magicamente se transformar em obra de arte, estamos um passo mais próximos de responder à pergunta inicial – o que distingue os objetos comuns das obras de arte?
Significa, então, nesse caso, que o objeto comum não pode ser obra de arte? Para
chegar ao fundo da questão, podemos tomar como exemplo o célebre cachimbo de Magritte. “Ceci n’est pas une pipe.” Claramente, a ideia que o pintor nos quer transmitir é a de que a sua obra não é, como ele diz, um cachimbo, mas a representação desse mesmo cachimbo. Não é raro na arte (visual) o tema ser uma natureza morta ou um objeto vulgar, mas mesmo nesses casos, poderíamos considerar como obra de arte a sua representação – quer fosse uma representação fiel, idealista ou abstrata. Por esse motivo, a arte é sempre o modo como o artista transforma a realidade através da representação da mesma. Como diz George Steiner, “nunca mais podemos olhar para os ciprestes do sul de França da mesma maneira depois de Van Gogh os ter pintado num
quadro”. Isto é, a arte não é a realidade, mas a sua representação usando determinados meios expressivos, sejam verbais, plásticos ou sonoros.
A representação, contudo, não tem de ser necessariamente realista. Não é uma
cópia exata da realidade. Dificilmente podemos considerar o trabalho 4’33 de John
Cage música, uma vez que quatro minutos e trinta e três de silêncio são, precisamente, a ausência de música, por muito inovador que seja o conceito. O uso de uma parte da realidade (o silêncio) como matéria artística falha por não haver qualquer recurso a meios expressivos para transformar a realidade. Até a fotografia, que parece ser uma cópia da realidade, implica, para ser artística, um certo olhar do fotógrafo que se pode materializar no ângulo da fotografia, no enquadramento, nos jogos de luz e de sombras, na escolha das cores, e até, em última análise, na opção por fotografar certo objeto ou situação.
A Brillo Box de Warhol não é um objeto artístico por essa razão: não representa
nada, a não ser a si própria, ou seja, a um exemplar individual de uma produção em
série. Não há na Brillo Box qualquer uso expressivo do objeto. Um artista não pode, simplesmente por capricho, expor um objeto de uso diário, tal como um urinol ou uma caixa de sabonetes, e considerar essa triste amostra da sua falta de criatividade como arte. Embora possa parecer criativo deslocar uma caixa de sabonete do seu contexto comercial para uma galeria de arte, isso não confere qualquer tipo de carácter artístico ao objeto, porque não é uma representação de nada. A simples mudança de contexto não é uma forma de arte. Não é por deslocar uma almofada da minha cama para o sofá da sala que ela se torna uma obra de arte, por muito que eu assim o proclame nas revistas da especialidade. Não é por se pôr um objeto numa galeria de arte que ele se torna arte, caso contrário até os extintores ou as fichas de eletricidade da galeria poderiam fazer concorrência à Pietá de Miguel Ângelo.
Por outro lado, a Brillo Box não tem o carácter único que define a verdadeira
obra de arte. Todos os objetos podem ser expressivos, no sentido em que têm um
significado, e na maioria dos objetos esse significado coincide com a sua utilidade. Não poderia ser de outro modo, porque nos objetos produzidos em série, ou seja, nos objetos cuja produção resulta de um fabrico industrial, a expressividade existe em função da utilidade. Mesmo que eu retire a Brillo Box do seu contexto útil e a coloque numa galeria de arte, ela tem duas características relacionadas que a impedem de ser uma obra de arte: não é uma peça única e é feita por uma máquina.
A obra de arte não pode deixar de ser única, porque é sempre a concretização
material do trabalho criativo do artista, que dá origem a uma peça única. É a diferença entre milhares de reproduções da Mona Lisa em cartazes, páginas de livros ou bases de copos e o quadro original, pintado por Da Vinci, que está no Museu do Louvre. A ideia de que uma cópia não é uma obra de arte é o que sustenta filosoficamente o facto de o plágio ser considerado um crime. A própria unicidade da peça é um elemento do seu carácter artístico, a tal ponto que uma falsificação lesa não só os direitos intelectuais do autor, como as naturais expectativas do público. Além disso, uma máquina nunca pode ter a intencionalidade expressiva, ou seja, o propósito de transmitir uma mensagem e de representar a realidade, que é parte do nosso critério de julgamento para distinguir um objeto comum de uma obra de arte.
Em contrapartida, nenhuma máquina poderia ter esculpido a Vénus de Milo,
que, do ponto de vista prático, não passa de um pedaço de mármore com curvas. Mas, essas curvas não são aleatórias, nem desprovidas de significado, são antes a expressão de um ideal de beleza e sensualidade. Esta escultura é o resultado do uso intencionalmente artístico de meios expressivos no trabalho único do artista. Nunca poderíamos confundi-la com um objeto comum porque tem todas as características que associamos a uma obra de arte.
E que características são essas? Em resumo, são a unicidade material, isto é, o
facto de o objeto ser único e não produzido industrialmente; a expressividade, ou seja, a capacidade de representar a realidade, abrindo-se a interpretações que estão para além da realidade imediata; e, por fim, no seguimento da expressividade, o uso de meios estéticos para a representação. Se qualquer coisa é magnífica em comparação com o nada, como afirma Chesterton, isso não significa que qualquer coisa é arte.